sábado, 11 de junho de 2016

O desmoronamento

 

Em uma das mais belas e emblemáticas canções do Queen, Bohemian Rhapsody, uma frase, logo de início, sempre me chamou a atenção em particular. O coral inicia perguntando pela diferença entre a vida real e a fantasia, e então segue com uma breve, porém das mais trágicas passagens que se poderia esperar encontrar numa letra de música:

Caught in a landslide, no escape from reality
"Pego num desmoronamento, sem escapatória da realidade".

Esse trecho me deixou "fisgado" por anos, sem saber se eu havia interpretado corretamente o seu significado. Mas hoje, acredito que a minha compreensão imediata sobre ele na época seja mesmo a que me satisfaz.

Imaginemos primeiro do que se trata um desmoronamento, tomando ao invés da metáfora aquilo que está presente no seu sentido mais literal: o fato inesperado de um terrível acontecimento; uma massa argilosa desaba subitamente sobre o indivíduo. Invade o seu ambiente e o seu cotidiano, anteriormente tido como seguro. Não deixa mesmo nenhum espaço para esboçar reação, um reflexo, qualquer possibilidade defesa ou sequer de perceber o que está se passando. Simplesmente irrompe. Brota ali, do nada, entre a pessoa e o seu mundo, que de repente se vê sendo engolfado, tragado para o fundo de um breu avassalador; o sujeito é cercado, engolido, esmagado. E no final de tudo, o silêncio. E um ignoto sufocamento.

Independentemente do episódio de vida real que possa ter inspirado a elaboração dessa passagem, certamente é possível imaginar nas nossas vidas diferentes eventos que assumem os contornos dessa poderosa metáfora do Queen. A demissão de um emprego, o término de um relacionamento, a perda de um ente querido, o próprio nascimento, talvez.  Acontecimentos distintos que parecem ter o efeito de um deslizamento, de um soterramento, algo que nos atinge e nos deixa completamente atordoados. Como diz o personagem de Vince Vaughn, na série True Detective, ao garoto que acabara de perder o pai: "Às vezes algo acontece que divide a sua vida. Há um antes, e um depois. Tenho umas cinco dessas a essa altura. E essa é a sua primeira. Mas se usá-la direito... essa coisa ruim, ela te tornará melhor. Mais forte. Você terá algo que as outras pessoas não têm."

O período após um "desmoronamento" nos deixa com apenas uma coisa a ser feita: uma necessidade de reorganizarmos as nossas vidas daquele ponto em diante; uma opção que não fomos livres para tomar. Simplesmente recomeçar do zero. O que havia antes, já não existe mais. O que há adiante não se parecerá em nada com o que é agora. A dolorosa despedida de um modo de ser e de permanecer que acabou de encontrar um ponto de ruptura e demanda de nós, emergencialmente, todas as nossas forças individuais para o cumprimento de uma imediata reconstrução

Procura-se ainda se apegar ao que já foi. Quer-se atender aos mesmos padrões da vida anterior, usufruir do mesmo nível de felicidade, da mesma rotina despreocupada e desembaraçada... Mas não se consegue. Dali por diante, o passado poderá ser tão bom quanto um peso por cima dos ombros, e só o passar do tempo permitirá que se transforme numa saudosa redordação.

Mas o mais fascinante para mim sempre foi ver como as pessoas fazem para superar e sobreviver a um desses episódios quando nele são surpreendidos. Para encarar a imponente tarefa de reconstruir sua vida, dando início a uma nova etapa que se esforça para se assemelhar a outra já conhecida. Eis o que eu mais admiro: como se consegue ter a paciência meticolosa de um restaurador de relíquias antigas para colar os cacos do que foi desmanchado em pedaços; a capacidade de apegar-se ainda à dignidade, como um resquício incólume da vida anterior, que ainda persiste e brilha; o ato de manter a cabeça erguida quando de cada nova derrota e desacerto na busca do reequilíbrio; a necessidade de travar novas batalhas e respirar ares mais baixos, lutas para as quais não se está preparado nem se conhece as regras, armas, rotas de fuga, e continuar, mesmo assim, seguindo adiante. 

Me parece ser esse mesmo o segredo: preservar o esforço de tentar viver bem e aceitar o destino não como um fatalismo pesaroso, mas como um espaço de escolha moral que diz "sobre esse escombro empregarei meu talento". Não se trata de conformismo indiferente, mas de não deixar que o abalo impeça a determinação de se manter fiel a si mesmo, sobrevivendo à descoberta de que uma parte das nossas vidas subitamente fugiu ao nosso controle. Não se entregar à calamidade nem passar a se contentar com viver uma vida insípida, ambicionando com isso não provar também dos seus dissabores. E, ignorando o dano, passando a manter o foco somente naquilo que depende exclusivamente de si. Numa palavra: estoicismo.


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