domingo, 3 de julho de 2016

OS "RUINS PARA NAVEGAÇÃO"



Há poucos anos eu estudei inglês com o auxílio de um curso promovido pela igreja dos Mórmons (a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias). Eu folheava aleatoriamente um dos cadernos dos elders que nos preparavam, quando de repente me deparei com um curioso mapa do Brasil. Esse mapa trazia a tradução para o inglês dos nomes dos estados brasileiros. Assim, o estado do Rio Grande do Sul era nele visto como Great Southern River, o Mato Grosso como Thick Bushes e a Amazônia tornava-se The Amazons. O mapa me divertiu imediatamente, pois me lembrou do quão pouco estamos acostumados a pensar no real significado do nome dos estados, muito provavelmente devido a regularidade com a qual os chamamos. 

Mas de repente, lembrei-me de procurar também pelo estado da Paraíba. O meu estado, um pequeno estado entre tantos amplos estados brasileiros, não tinha me chamado a atenção de imediato. Ao percorrer então com os olhos a região nordeste do mapa eu me surpreendi com a precisa denominação que a Paraíba havia recebido naquela educativa carta, que o jovem mórmon carregara consigo como um missionário dedicado ao estudo da cultura brasileira: Bad For Navigation...

Aquilo me trouxe um certo desencantamento. Sim, era verdade; lembrei-me disso de longínquas aulas de história, há anos esquecidas: a etimologia atribui o nome do estado da Paraíba como oriundo da língua tupi, que traz o pa'ra = "rio", + a'iba = "ruim" ou "difícil de navegar", nome que denomina também o principal rio que corta a região. Paraíba, portanto, como Ruim Para Navegação, e "paraibanos", por conseguinte, como uma paráfrase que não poderia correr muito longe dessa raiz, e de algum modo, pejorativa. O caso é que, conforme narra a lenda, o rio contava com a existência de pedras e correnteza forte, o que dificultava a navegação por algumas passagens. Daí que a navegação, tomada como um empreendimento humano, fracassaria, marcando o nome da terra então como uma espécie de "lugar onde fracassam os grandes empreendimentos". Bem, acho que tudo isso pode parecer uma bobagem ufanista, ou me fazer soar como uma daquelas pessoas que nutrem uma visão romantizada dos ícones nacionais, mas eu realmente não me vejo como uma pessoa nacionalista (e quem realmente ainda o é nesses dias?), mas me incomodei mesmo assim. Pois como toda derivação, o termo "paraibano" empresta sua carga de significado à personalidade das pessoas que aqui vivem, fazendo com que agora não só o rio seja ruim para a navegação. Ser "paraibano", logo, significaria ser "ruim para a navegação", ou ruim para os grandes empreendimentos. Aborreceu-me, portanto, essa ideia negativa associada ao nome do estado.

Subitamente, porém, me ocorreu que o termo poderia adquirir com facilidade um significado bastante diferente. Todos os nomes dos estados destacam seus fatores geográficos como o objeto relevante a ser identificado: alguns destacam suas matas (Mato Grosso), outros os seus rios, seus lagos, e mesmo o nome do Brasil remete a uma madeira em particular. Mas a Paraíba não nomeia simplesmente um rio; sem querer, sua definição acabou abrangendo algo do rio, sua particularidade, sua personalidade. A de ser um rio ruim. Mas não ruim em si mesmo, ruim para a navegação. Então é isso: o nome da Paraíba não relata uma propriedade geográfica meramente, mas sim as nuances de uma personalidade. Pois a palavra "navegação" dá ao nome da Paraíba uma profundidade muito maior do que se poderia inicialmente pensar.

Isso por causa do sentido poético inevitável da palavra "navegar", presente na sua etimologia. Com um passado histórico dominado pela presença dos portugueses, um povo de conquistadores navegantes, sem nenhuma surpresa esse ofício ocupou o espaço das mais diferentes metáforas na poesia e na literatura brasileiras. A navegação está ligada à exploração, aos grandes descobrimentos de povos e de almas, à dominação e à conquista. Pois como disse Álvaro de Campos, "todo o atracar, todo o largar de navio é [...] inconscientemente simbólico, terrivelmente ameaçador de significações metafísicas...". Navegar, portanto, como uma imposição de vontade sobre algo, como exploração e busca do conhecimento sobre alguma coisa. Navegar, portanto, é um meio de impor uma vontade forte, de apoderar-se; um meio para a conquista de um algo remoto.

E o conceito de uma vontade forte parece explicitar bem o caráter paraibano: não estaria o orgulho de uma casta guerreira escondido ali, nas suas brigas de  foices e peixeiras, no seu não levar desaforo pra casa, como armas improvisadas para defender um orgulho beligerante que fosse resquício de uma altivez mais antiga e mais nobre? E esta, por sua vez, não seria o baluarte para uma auto reverência exigente, uma raiz para o seu zelo pelo "bom costume", que não tolera a insolência e que condena em seus cordéis a figura do homem bronco e sem polidez? E o que dizer do seu vício de linguagem ao se dirigir ao outro como "seu cabra", atitude genuinamente dominadora, própria dos coronéis de outrora, que não mais distinguiam os seus rebanhos de cabras dos rebanhos de homens ao seu serviço, categorizando-os num mesmo plano de pensamento por aquilo que tinham em comum, o fato de serem sua propriedade?

Desvendada assim a verdade, tudo agora me parece bem melhor: Ruins Para a Navegação por não aceitarem facilmente lançarem sobre suas águas a caravela de uma vontade alheia; a teimosia do rio projeta no espírito das pessoas o reflexo de uma obstinação nobre, tornando-nos possuidores de uma vontade própria, forte, e orgulhosa, que segue por um curso, por um leito, que não se deixa prender nem dominar. Ou ainda, Ruins Para a Navegação como homens de espírito solene e profundo, que não se deixa facilmente ser navegado e explorado; difíceis portanto de conhecer profundamente ou, aperfeiçoando ainda mais essa imagem, difíceis de "sondar" em seus pensamentos.

Pronto, agora sim tudo está bem melhor. "E, sem que nada se altere, tudo se revela diverso", mas que fique bem explicado. Ou, como diria um outro ditado, "tudo vale a pena, quando a alma não é pequena".


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